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Quem tiver ouvidos ouça. Por Angela Barros Leal

Se um viajante, em uma tarde de inverno, senta a seu lado em um saguão de espera para um voo, e de imediato passa a despejar sobre você a crônica de vida dele, você reclama em silêncio, dentro de sua mente, desse destino de escuta que lhe coube. Você se culpa duas vezes: por haver usurpado, para frase inicial, o belo título de um livro de Ítalo Calvino, e pela possibilidade de haver alguma falha física de sua parte.

Talvez suas orelhas sejam grandes demais, antenas prontas a captar invisíveis mensagens alheias; talvez seu rosto seja dotado de algo que pede para ser alimentado por histórias pessoais; talvez a mensagem corporal que você emite seja receptiva a essas almas perdidas que andam por aí, ansiosas por serem ouvidas. Você revira olhos metafóricos para o céu de nuvens escuras e aviões, e se queixa internamente de tal sina. Não de novo, você protesta calado, erguendo o punho a esse destino de ouvinte. Não a mais alguma longa narrativa em primeira pessoa, você reclama aos deuses sagrados dos órgãos auditivos, cansado de tanto ouvir a uns e outros.

Trata-se, porém, de uma realidade e você pensa em alternativas. Você pode acenar com a cabeça ao vizinho falante, em meio sorriso, fingindo concordância com o que ele diz, e em seguida olhar à sua volta, acenar com ânimo para alguém que você supostamente reconheceu, na outra ponta do populoso saguão – um amigo de infância, um colega de trabalho – levantar-se da cadeira, despedir-se dele com educação e puxar sua mala de mão para outro pouso.

É possível que você seja forçado a repensar essa estratégia. Você chegou cedo. Está sentado em excelente posição para se postar na fila, tão logo aconteça a chamada para o embarque. Você percebe que quase todas as cadeiras estão ocupadas, e não interessa espremer-se entre dois passageiros, muito menos aguardar de pé. Descartada essa primeira ideia, o recurso seguinte é partir para o uso do headphone.

Funcionando ou não, ligado ou não a uma fonte transmissora de som, o headphone é um dos mais seguros escudos de proteção. Testado e comprovado. Funciona como evidência física, material, de sua atenção a assuntos outros. De seu isolamento sonoro. Você está ocupado em ouvir a voz que ecoa dentro de seu cérebro, cortando ligações com o ambiente exterior. Nada que venha de fora interessa.

Seu headphone está dentro da mala de mão, uma daquelas malas que se abrem ao meio em dois compartimentos, ambos fechados por um zíper, ou seja, uma trabalheira grande. 

A narrativa do vizinho prossegue, cheia de entusiasmo. Ele é do tipo que, de minuto em minuto, empurra o dedo em sua perna, toca no seu braço, demandando cumplicidade e atenção. Você tenta se afastar dele física e emocionalmente, e continua acenando com a cabeça, a fingir um inexistente envolvimento no que é narrado. 

Sua mente acelera em busca da melhor e mais sociável maneira de se livrar – que não seja dar as costas, ou pedir diretamente que se cale, como o fez Juan Carlos, da Espanha, ao então presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Juan Carlos era Rei. Você não é.

Você retira seu celular do bolso e passeia o dedo sobre a tela, rosto concentrado, alternando atenção entre o monólogo do vizinho e suas redes sociais. Até uma pessoa desprovida de visão entenderia a necessidade por privacidade, pelo respeito àqueles preciosos momentos em que você se relaciona com seus milhões de seguidores. Não é assim que funciona para ele, e o discurso não se interrompe.

Você é uma pessoa prática. Ou dessa forma se considera. Você suspira resolve assumir o que se mostrou inevitável. Você tem dois ouvidos e passa a escutar o que o vizinho conta.

E percebe que a história de vida dele é das mais interessantes, do menino nascido em minúscula freguesia lusa, crescendo a pisar uvas na quinta do pai, cuja morte precoce o deixara com a mãe, um irmão, e bolsos vazios. Do rapazote mudando de cidades e escolas, até ganhar o título advocatício em Coimbra. Do jovem homem audacioso, a bater na porta de escritórios afamados de outros distritos, tendo o carma a seu favor. De profissional com endereços transcontinentais.

Ouvidos atentos, você escuta a mensagem no sistema de som anunciando o embarque, e entra na fila com ele, justamente quando está sendo narrada a experiência como sapador, lidando com minas terrestres em uma das guerras coloniais em África. Aí, meu amigo, ainda que ele não desista de empurrar o dedo em seu braço ou seu ombro, você já perdeu a batalha e está inteiramente rendido, mais uma vítima da curiosidade inescapável de ouvir viajantes em tardes brumosas de inverno.

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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