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A conspiração da realidade, por Ricardo Alcântara

Ricardo Alcântara é publicitário e escritor.

Duas quiromancias circularam por Brasília nos últimos dias. A primeira dá conta de já haver um reboliço nos gabinetes da capital para dar fim ao mandato do atual presidente. A outra, teoria conspiratória, desconfia de que ele tenciona sua relação com o congresso para provocar um movimento, fracassado, pelo impeachment e governar com poderes mais amplos.

Nenhuma delas me convenceu ainda, mas o simples fato de que transitam em círculos sóbrios é sintomático do nível de descolamento da realidade que a mente de Bolsonaro alcançou e do agravamento de seus efeitos numa fase crítica como a atual, de pandemia, quando a serenidade e a capacidade de liderança dos chefes de Estado estão à prova.

Não se trata aqui de discorrer sobre as declarações e atitudes negligentes do presidente sobre o assunto, mas de algo mais grave: a discrepância entre suas manifestações e o teor das medidas adotadas pelo seu próprio governo. É como se ele estivesse alheio às decisões, alienado de sua função, levando muitos a duvidar de sua integridade psicológica.

Penso saber as razões do presidente para demonstrar compulsiva rejeição aos fatos e se refugiar na narrativa desagregadora que parece movê-lo sempre que sua mente parte em busca da verdade: é que a pandemia confronta aspectos centrais do ideário inconsistente que define sua ação política e de seus adeptos. A realidade está conspirando contra as lendas em que acredita:

1) O Estado diz a que veio

A pandemia demonstra que as soluções reclamadas pelo interesse comum em momentos de extrema fragilidade estão em grande parte fora do alcance de realização da iniciativa privada, o que coloca sobre o milho os joelhos do ultra liberalismo que ora se oferece à nação como modelo redentor. É no erário que se tem buscado as reservas compensatórias para o apagão de consumo.

2) A primazia da Ciência

O anti-intelectualismo bolsonarista, que presta homenagens à mediocridade com teorias estapafúrdias (a terra é plana, Hitler era de esquerda etc), não oferece nenhuma contribuição. Ao contrário, a crise demonstra a relevância de prestigiar a comunidade acadêmica e investir em pesquisa e coloca no centro da solução a informação como base da conduta coletiva.

3) A sociedade ativa e consciente

A pandemia tem sido um laboratório de empatia e ética. Ela convoca a sociedade “a fazer a sua parte”, produz convergência de esforços entre instituições diversas. Demonstra que as grandes soluções nascem da vontade coletiva e não de decisões autocráticas. Para um presidente que iniciou o mandato prometendo “combater o ativismo”, péssima notícia: é nós ou nada.

Portanto, é isso o que tanto incomoda Bolsonaro: a realidade está derretendo como gelo ao sol as mistificações ideológicas que dão forma ao seu discurso. Todas as soluções apontam numa direção que fortalece tudo aquilo que ele tem combatido: um Estado forte no que lhe compete, a relevância da autoridade científica, uma sociedade ativa e bem informada.

O presidente precisa se render à realidade antes que ela esvazie a reserva de legalidade de seu mandato. A nação não se submeterá a um genocídio simplesmente porque ele decidiu que é “apenas uma gripezinha” o que a Primeira-ministra da Alemanha definiu como “o maior desafio da civilização desde o fim da segunda guerra mundial”.

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