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A China será livre? Por Priscilla Peixoto do Amaral

Priscilla Peixoto do Amaral é empresária, advogada especializada em direito empresarial, internacional, contratos, negociações e soluções de conflitos. É mestre (LL.m) em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e possui MBA em Strategic Business Management pela Ohio University nos EUA. Escreve no Focus. E-mail: priscillacpamaral@gmail.com

Priscilla Peixoto do Amaral
Post convidado

Na visão do renomado sociólogo Seymour Martin Lipset (1922 – 2006), a modernização econômica é capaz de criar condições favoráveis ​​para uma democracia estável. Essa é uma das teorias mais influentes, robustas e comprovadas pelo tempo nas ciências sociais.

Seguindo esta linha de raciocínio, em 2007, o economista Henry S. Rowen previu que o “milagre econômico” chinês poderia tornar o país parcialmente democrático em 2015 e completamente livre uma década depois. Infelizmente, o regime dominado pelo Partido Comunista Chinês (PCCh) não apenas resistiu, mas se tornou mais repressivo internamente e mais agressivo no exterior.

Ao contrário das previsões acima narradas, desde que Xi Jinping se tornou líder em 2012, o PCCh retrocedeu ao caminho neo-stalinista, operando o regime de um homem só onde a repressão política vive o seu pior nível desde que Mao Zedong morreu em 1976. Xi reintroduziu a doutrinação ideológica e lançou uma política externa agressiva que desafia abertamente a teoria e a prática de uma ordem internacional liberal governada por regras, como por exemplo a construção de ilhas artificiais militarizadas nas disputadas águas do Mar da China Meridional, a imposição de uma dura lei de segurança nacional em Hong Kong e o encarceramento em massa de muçulmanos em Xinjiang.

Assim, mais de seis décadas após a publicação de “Some Social Requisites of Democracy: Economic Development and Political Legitimacy”, o trabalho de Lipset é posto em prova pelo ponto de vista do quebra-cabeças chinês.  Afinal, nem mesmo o rápido crescimento econômico ocorrido nas últimas quatro décadas foi capaz de elevar o Estado à democratização, ou sequer perto dela.

A experiência chinesa desde a era Mao nos obriga a repensar a relação entre desenvolvimento econômico e democracia em um regime pós-totalitário. Nessa exploração intelectual, questionamos: Quais as fontes institucionais exclusivas do país podem ter obstruído o surgimento de instituições democráticas, no que pese ter ocorrido uma modernização econômica?

Nesse ponto de vista, o que vemos ocorrer na China contradiz o que nos ensina a teoria da modernização, a qual vincula o desenvolvimento econômico ao Estado democrático, partindo para uma liberalização evolucionária? Não totalmente, mas o processo pode ser mais difícil e demorado do que se imagina.  Ocorre que mesmo quando as circunstâncias socioeconômicas são favoráveis, fatores políticos ainda podem significar problemas para a democratização. E Lipset estava bem ciente disso em seu ensaio. Para o autor, um dos problemas previstos era o surgimento de regimes comunistas na Europa Central e Oriental. Devido à ideologia marxista desses regimes e aos laços com a União Soviética, Lipset advertiu que “a presença de comunistas impede uma previsão fácil de que o desenvolvimento econômico estabilize a democracia nesses países europeus.”.

Se olharmos de uma forma mais atenta, o caso China pode nos dar a conclusão de que pode ser muito mais difícil democratizar um regime pós-totalitário, como o chinês, do que democratizar um regime autoritário. Isto porque os Estados pós-totalitários, tais como o dominado pelo PCCh, possuem variados recursos para resistir aos efeitos liberalizantes da modernização.

Um partido leninista, com sua obstinação de governar sozinho e livre de competição, é o cerne do problema. Tal partido manterá um aparato coercitivo grande e capaz, um controle efetivo sobre a informação e controle de setores econômicos cruciais. O desenvolvimento econômico pode até criar imposições democratizantes, mas o regime terá maneiras e motivos para desafiá-los, contorná-los, frustrá-los e atrasá-los.

Muito embora regimes totalitários fascistas, como a Itália de Benito Mussolini e a Alemanha nazista também fossem terrivelmente repressivos, sua morte comparativamente rápida os impediu de modificar totalmente suas sociedades e consolidar instituições totalitárias que funcionassem à longo prazo.

Ao contrário, os regimes comunistas destruíram de forma sistemática centros alternativos de poder. Especificamente, na China, desde 1950, as campanhas maoístas dizimaram grupos religiosos, elites rurais, sociedades secretas, classes médias urbanas e os intelectuais. O que supostamente poderíamos chamar de “grupos da sociedade civil”, na verdade, são de controle estatal efetivo. Para usar o duplo discurso orwelliano,”organizações não governamentais organizadas pelo governo”.

O que temos é um partido-estado leninista organizado com recursos econômicos de massa, um aparato repressivo hábil e implacável e uma sociedade civil destruída, onde a “sociedade política” (isto é, os partidos de oposição) não existe, o setor privado é anêmico e o estado de direito não está em lugar nenhum – todos legados onipresentes de totalitarismo – prejudicam as perspectivas de democratização em regimes pós-totalitários.

Falando em recursos econômicos, em seu ensaio, Lipset se referiu indiretamente ao vínculo entre o tipo de regime e a democratização: “Quanto mais recursos de poder, status e riqueza estão concentrados no estado, mais difícil é institucionalizar a democracia.”. Observe o que acontece com a Rússia e seu petróleo. A história recente dos países do antigo bloco soviético apoia a observação de Lipset.

Como se sabe, na China uma forma de capitalismo de estado está agora em ascensão, principalmente em setores como finanças, energia e telecomunicações. Contudo, o sucesso das estatais não foi golpe de sorte. Como o próprio Xi afirmou, “as empresas estatais são uma importante base material e política para o socialismo com características chinesas, e são um importante pilar e força para o partido governar e rejuvenescer o país. Eles devem ser mais fortes, melhores e maiores.”.

Com o rápido crescimento enchendo os cofres do estado, a modernização das forças de segurança foi um dos principais pilares de investimento, pagando por uma capacidade repressiva aprimorada e vigilância ampliada que limitam os efeitos políticos do progresso. Desde então, um Grande Firewall foi construído, censurando notícias e informações e evitando ações coletivas antirregime, por exemplo. O regime pós-totalitário chinês agora exerce tanta capacidade repressiva quanto um regime totalitário clássico, se não mais.

Se nos basearmos na história de como ocorreu a democratização no antigo bloco soviético, poderíamos concluir que um avanço decisivo somente poderia acontecer quando as instituições totalitárias são desmanteladas rapidamente em uma revolução do tipo “Big Bang”. Vale lembrar, contudo, que toda revolução tem seus custos de curto prazo. A democracia oriunda das ruínas do comunismo, mesmo assim, está longe de ser certa. Cite-se novamente a Rússia. Em um exemplo nada animador, o fim do comunismo naquela região marcou o início de uma década de declínio econômico, corrupção, governança fracassada e democracia instável, o que abriu caminho para a ascensão de um novo autocrata, Vladimir Putin. A dificuldade de democratização em regimes pós-totalitários não passou despercebida. Jeane Kirkpatrick apontou em 1979 que, ao contrário das ditaduras convencionais, nenhum regime comunista jamais foi realmente democratizado.

Outro ponto que hoje dificulta o processo de democratização da China é o fato de que o rápido crescimento pode até ter criado uma nova classe média, mas essa classe média é menos autônoma e mais dependente do estado do que as classes médias em outros lugares. A razão é evidente: muito dela ainda trabalha para o estado. Em 2019, as entidades totalmente estatais empregavam mais de 54 milhões de pessoas, e o número só cresce.

Com fortunas e interesses entrelaçados com o partido-estado leninista, uma reforma econômica que visa uma transição para longe do comunismo tem uma grande chance de emperrar. Os interessados podem usar instituições legadas totalitárias para defender seus privilégios contra qualquer reforma – econômica ou política – que os ameace.

Todavia, a estratégia neo-stalinista de Xi quase certamente exacerbará as tensões existentes, criará novos desafios e prejudicará as perspectivas de sobrevivência de longo prazo do PCCh.

Uma das maiores ameaças à ordem neo-stalinista da China é a luta pela sucessão. Tendo acabado com o limite do mandato presidencial, Xi, de 67 anos, está decidido a governar por tempo indeterminado. Como aconteceu depois da morte de Stalin e de Mao, uma vez que Xi se for, uma luta pelo poder começará. Como Nikita Khrushchev e Deng Xiaoping, o vencedor da luta pela sucessão pós-Xi será incentivado a definir um novo rumo para um regime em crise.

Outra preocupação para o PCCh é a dissociação econômica que está ocorrendo agora entre a China e o Ocidente, especialmente os com Estados Unidos – o que já acontecia antes mesmo da pandemia. O regime praticamente neo-stalinista e a política externa agressiva de Xi alimentam uma divisão com os Estados Unidos e  – em menor grau –  com os aliados dos EUA.  Se as democracias estabelecidas restringirem o acesso da China à tecnologia e aos mercados, o potencial de crescimento da economia da RPC sofrerá ainda mais erosão. Contudo, há riscos para todos os lados.

A intensidade do conflito estratégico EUA-China está longe de ser certa. No que pese a ideia de que a nova administração de Biden possa diminuir o ritmo do embate, a desagregação econômica que começou sob a presidência de Donald Trump continuará. O aumento das tensões pode desencadear uma corrida armamentista e uma disputa por influência diplomática sobre regimes de terceiros que desviarão recursos das necessidades internas da China.

Por fim, o futuro poderia ser o pesadelo do PCCh quando as condições econômicas e políticas semelhantes às que atormentaram o último estágio do regime soviético começarem a assolar o governo do PCCh.

Considerando que haverá um crescimento anual médio de 3% até 2035, o que pode até soar modesto para os atuais padrões da China, isso resultará em um PIB per capita superior a $25.000 por ano. Junte isso ao fato de que outras cem milhões de pessoas terão se formado na faculdade, com um quinto da população com diploma pós-secundário.

Se pensarmos em um cenário de médio prazo, isso trará uma mobilização política decisiva contra o regime de um partido em meados de 2035? Ninguém pode dizer. Contudo, com uma renda per capita que será igual à do Chile hoje e milhões de cidadãos com ensino superior, mais do que nunca a sociedade estará mais capaz de pressionar por mudanças democráticas. Se pudermos usar o destino das ditaduras comunistas pós-totalitárias no antigo bloco soviético como guia histórico, um palpite que vale fazer é que a longa jornada da China será vista como um desvio histórico que atrasou, mas que não pôde impedir um encontro com a democracia. Enfim, quando toda esta união acontecer, a tese de modernização de Lipset dará a sua “cartada final” – e a China pode finalmente marchar para fora da longa e escura sombra de seu passado totalitário.

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