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A China e os tribunais inteligentes, por Priscilla Peixoto do Amaral

Priscilla Peixoto do Amaral é empresária, advogada especializada em direito empresarial, internacional, contratos, negociações e soluções de conflitos. É mestre (LL.m) em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e possui MBA em Strategic Business Management pela Ohio University nos EUA. Escreve no Focus.jor semanalmente. E-mail: priscillacpamaral@gmail.com

Por Priscilla Peixoto do Amaral
Post convidado

Em praticamente todo o mundo, o que inclui nações desenvolvidas, tribunais estão enfrentando a problemática de continuar eficazmente suas operações frente ao necessário isolamento em combate ao novo coronavírus. Em março deste ano, por exemplo, os ministros do Reino Unido divulgaram que ainda estavam preparando uma legislação de emergência para permitir que os seus tribunais adotassem audiências on-line em vídeo.

Atualmente, a preocupação é uníssona: A justiça – entregue de uma forma célere, eficaz e transparente – é uma pedra angular do sistema de Estado de Direito. Dessa forma, como garantir que cidadãos forçados ao isolamento ainda possam recorrer a um tribunal, garantindo que este possa continuar a entregar justiça com eficiência, mesmo no auge de uma pandemia e fora de um tribunal de “tijolo e argamassa”?

Enquanto a tecnologia está desempenhando um papel cada vez mais importante nos tribunais de todo o mundo, porém em um grau ainda muito principiante, nos tribunais chineses a informatização do judiciário ocupa uma posição de importância fundamental e estratégica, sendo o pilar da reforma judicial que teve início ainda em 2013. Ao estabelecerem uma estrutura de ‘Smart Courts’, esses tribunais estão adotando e experimentando tecnologias profundas em um ritmo muito mais rápido e em uma escala maior em comparação com a maioria dos outros países.

A reforma, que é conduzida de maneira ativa, constante e prática, vem obtendo grandes conquistas: está mudando a maneira pela qual a justiça é entregue ao público e o judiciário é auto gerenciado. As ‘Smart Courts’  visam “construir um mecanismo judicial que seja aberto, dinâmico e transparente. Bem como melhorar o entendimento ao público, a confiança e a supervisão do judiciário pelos cidadãos”.

Essas dores relacionadas às deficiências no judiciário foram vistas como impedimento ao crescimento econômico da China, bem como estava minando a confiança do público e a confiança internacional nos tribunais chineses. Dessa forma, nos últimos anos, os tribunais chineses investiram no desenvolvimento de plataformas de resolução de disputas on-line; tribunais especializados na área da Internet; e o amplo uso de ferramentas de inteligência artificial (IA) nos processos. Outras novas tecnologias – como soluções de contabilidade distribuída, blockchain e contratos inteligentes – estão atualmente sendo implementadas em vários tribunais chineses.

Em julho de 2013, o Supremo Tribunal Popular da China (SPC) desenvolveu uma plataforma digital chamada “China Judgments Online”. De acordo com o SPC, praticamente todos os documentos judiciais produzidos pelos tribunais chineses são publicados neste site. Em fevereiro de 2020, havia mais de 81,5 milhões de documentos judiciais neste site, representando o maior repositório on-line de documentos judiciais do mundo. Além disso, nessa plataforma, o SPC também estabeleceu a transmissão ao vivo em tempo real de audiências em todos os níveis.

Todos os tribunais da China – que incluem 9.277 tribunais e 39 tribunais marítimos – estão conectados à plataforma centralizada de gerenciamento e serviço de big data do SPC. Os dados dos processos judiciais são coletados em tempo real. A plataforma é atualizada automaticamente a cada cinco minutos através do sistema de processamento de informações. Ele permite a cobertura total, convergência e acessibilidade de dados judiciais em todo o país e está sujeito a um rigoroso controle de qualidade de dados e mecanismo de verificação. Desta forma, não há espaço para os tribunais ou autoridades locais embelezarem ou manipularem as estatísticas enviadas à plataforma nacional centralizada.

Dado o crescente aumento de casos apresentados aos tribunais, alguns destes já estão experimentando “juízes de IA” para ajudar no julgamento de casos básicos, focando os esforços do “magistrado humano” para casos mais complexos. Essas ferramentas de IA também têm como objetivo promover uma maior consistência dos julgamentos em toda a China. O sistema também permite que um juiz envie informações relevantes do caso e receba automaticamente análises de casos semelhantes para usar em suas referências de sentença.

Recentemente, as autoridades judiciais convidaram repórteres ao Tribunal da Internet em Hangzhou para ver como ele funciona. Em uma demonstração, um cidadão foi visto usando videoconferência para se comunicar com o juiz da IA, e o seguinte foi observado: “O réu tem alguma objeção à natureza das evidências judiciais de blockchain apresentadas pelo autor?” um juiz virtual perguntou durante o julgamento. Na ocasião, o juiz não humano foi representado no sistema por uma imagem de um homem vestindo uma túnica preta. “Não há objeção”, respondeu o réu.

Os juízes “apareceram” pelo holograma e são criações artificiais – não há um juiz real presente. O juiz holográfico se parece com uma pessoa real, mas é uma imagem 3D sintetizada de diferentes juízes. A inteligência define horários, faz perguntas aos litigantes, obtém evidências e emite decisões judiciais. O Tribunal da Internet opera 24 horas por dia, sete dias por semana. No mercado de hoje, onde quase tudo é comprado ou negociado on-line, o potencial para esse tipo de sistema judicial é significativo.

Outro uso da IA ​​é o fornecimento de informações legais para as partes. Por exemplo, o Tribunal da Internet de Pequim desenvolveu um holograma semelhante ao humano que fornece algumas informações básicas sobre leis, regulamentos e procedimentos judiciais para as partes litigantes, incluindo a questão de saber se determinado tribunal é a jurisdição apropriada ou se outros modos resolução de controvérsias estão disponíveis para as partes antes que elas busquem o judiciário. Os tribunais de Pequim, Xangai e Guangdong, lançaram novos robôs com inteligência artificial em seus salões principais para facilitar o acesso do público à manuais sobre procedimentos judiciais e fornecer informações básicas sobre juízes e funcionários do tribunal.

Os sistemas de reconhecimento de fala baseados em IA também estão sendo implementados em muitos tribunais chineses para obter a gravação automática em tempo real dos procedimentos de julgamento. Esses sistemas também podem aceitar comandos verbais para exibir informações e evidências relevantes nas telas digitais. A tecnologia pode distinguir as vozes de juízes, demandantes, réus e outros participantes de litígios com um alto nível de precisão. O julgamento também pode ser gravado de forma síncrona, para que os participantes do litígio possam visualizar a transcrição da audiência em tempo real.

Outra plataforma judicial muito popular na China é o “tribunal móvel”. O aplicativo pode ser baixado no WeChat, o aplicativo de mídia social mais popular da China. O aplicativo judicial usa tecnologia de reconhecimento facial para autenticar as partes. Os usuários podem registrar um caso diretamente, se comunicar com o juiz enviando mensagens de texto e áudio e fazer upload de provas. As partes e o juiz podem fazer login no aplicativo ao mesmo tempo, realizar a mediação antes do julgamento e concluir a assinatura eletrônica do acordo de mediação (se bem-sucedido).

Outra inovação que vem sendo implantada pelos tribunais é o uso da tecnologia blockchain. Os tribunais da Internet aceitaram o blockchain como um meio de armazenar evidências e de autenticação. Isso é particularmente útil para evidências on-line de disputas geradas e armazenadas na Internet. O Hangzhou Internet Court também está implantando o uso de contratos inteligentes para arquivar casos automaticamente.

A reforma judicial chinesa também considerou a importância da resolução alternativa de disputas. Nos últimos anos, vários tribunais chineses implantaram plataformas de mediação on-line e pré-julgamento. Essas plataformas não visam resolver apenas questões básicas, mas também disputas mais complexas, de alto valor e sensíveis. Um exemplo dessa abordagem foi a mediação on-line de dez casos de lesões corporais perante o antigo Tribunal de Transporte Ferroviário de Pequim em 2018, que envolveu 25 requerentes processando uma empresa ferroviária. Os requerentes eram parentes próximos de vítimas que foram mortas em um trágico acidente de trem. Os dez casos foram mediados com sucesso. Desde o protocolo da inicial até a conclusão da mediação, esses casos foram resolvidos dentro de um mês. Esses procedimentos demonstram a possibilidade de resolução rápida e econômica de reivindicações de danos pessoais que podem reduzir significativamente a carga de litígio das partes. Vale ressaltar que os demandantes residiam em diferentes províncias da China e muitos estavam afastados geograficamente dos tribunais físicos.

Embora existam diferenças consideráveis ​​entre os sistemas jurídicos das nações, suas constituições e a natureza dos procedimentos judiciais, os tempos de crise mostram que a função básica dos tribunais em todo o mundo é a mesma. Podemos extrair de cada nação aprendizados que podem ser estudados e implantado em nossa realidade. Uma melhoria do sistema judicial ajudaria judiciário a desempenhar um papel mais eficaz na administração da justiça. Richard Susskind, em seu livro mais recente Online Courts and the Future of Justice, defendeu a introdução de tribunais on-line no mundo, especialmente com o objetivo de promover o acesso à justiça.

O sistema de tribunais inteligentes na China já realizou a visão de Susskind. Além do acesso à justiça, os tribunais inteligentes têm sido a base para aumentar o profissionalismo, a transparência e a responsabilidade de seus tribunais e juízes, e talvez o mais importante, aumentar a confiança do público no judiciário.

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