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A Casa Azul era de fato azul?

A “casa azul” nasceu branca, mediterrânea.

Povo e governo, os sodalícios e os homens (e mulheres) de cultura assistiram ao desmanche da memória da antiga cidade de Fortaleza, anos a fio — indiferentes, permitindo-se algumas vagas reprimendas contra os “bota-abaixo”. 

Casas “modernosas”, tipo Monsieur Hulot, de concepção de gosto faustoso, duvidoso, foram construídas no bairro novo classe-média ascendente de Fátima, ao longo da avenida 13 de maio e nos seus arredores. 

O nome do proprietário era, de regra, posto no frontispício, as platibandas vistosas e lá, orgulhosamente delineadas, as iniciais do senhor de tal no reboco da alvenaria…

Edificações de épocas, no Benfica, Jacarecanga, pelo Outeiro, Alagadiço, Praia de Iracema, praça do Ferreira e no seu entorno, abandonadas, transformadas em estabelecimentos comerciais — e modernizadas. Cearense adora a “modernidade”. É um vezo atávico. Como foge das coisas velhas. Pelo menos até há bem pouco tempo. Antes de globalizar-se.

Arrancaram os trilhos dos bondes da Light, recolheram os carris, demoliram o vistoso prédio da Intendência e enfiaram, no lugar o Abrigo Central, espécie de mercado de comes-e-bebes e parlatório de desocupados, por onde se construíam, à época, a opinião e os mexericos mundanos. As garapeiras e o “Pedão” da bananada marcaram a sua presença. O café Globo ainda resistia heroicamente à popularização do “café”  e concentrava em suas bancas as usinas de mexericos, as fofocas, de hoje. O café Globo era o ponto zero das “fake news” de antanho, quando os sociólogos e psicólogos da praça do Ferreira ainda não conheciam a Escola de Frankfurt.

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Por inépcia ou esquecimento dos empreendedores da cidade e dos agentes do governo, muitas das velhas construções do final e início do século XX permaneceram de pé, escondidas por adaptações modernizadoras, amparadas pelo esquecimento. Outras, ruíram por iniciativa própria ou pelo abandono a que foram relegadas. Não serviam mais para moradia, muito menos como ponto comercial, uma borracharia que fosse, uma loja de botões.

Dizia-se, a voz autorizada dos entendidos, que as décadas de 50/60 foram marcadas pela engenhosidade dos engenheiros. A alvenaria saíra das mãos dos mestres e contra-mestres de obras e caíra nas mãos dos construtores diplomados.

À falta de arquitetos —  levaria algum tempo para a UFC instalar a Escola de Arquitetura, orgulho de Martins Filho — a engenharia civil fazia tudo por aqui, ao tempo, sob a inspiração invisível de um barão Haussmann autodidata. Os engenheiros projetavam, calculavam, construíam — e inovavam, montados nas suas pranchetas e armados das suas réguas de cálculo, exibidas com orgulho, identificação que abria os corações femininos para os jovens estudantes, não era assim, meus caros amigos Otomar Soares, Luiz Marques, Hugo Alcântara…?

Pois, de repente, sem que houvessem privado da intimidade dos modeladores famosos da arquitetura dos homens, antes da Bauhaus, puseram-se os cearenses a preocupar-se com estilos e escolas, animados pelos cronistas sociais e pelas revistas tipo Casa&Mesa — e descobriram que impunha-se salvar a memória arquitetônica do povo cearense. Poucos sabiam, é verdade, sobre o que estavam tratando, porém, ainda assim, tratavam. 

A cultura foi por essa época institucionalizada, com secretaria, secretário, conselhos e consultores. Passou a ser atividade e responsabilidade de governo, objeto com metas e orçamento. Dera-se, de vez, e para sempre, a burocratização da cultura. 

O intelectual, designação genérica, não especializada de uma atividade até então privada, era alguém a quem se atribuía a precedência nas coisas do pensamento e da ilustração. Tinham a cara dos sodalícios que os recebiam. Demonstraram, sempre, e aqui não seria diferente, sólida afinidade grupal. A vocação para a vida intelectual tornou-os, aos poucos, profissionais; e, em casos extremos, chegariam a sindicalizar-se. Tudo indicava que a cultura deixara de ser artigo de consumo conspícuo para compor a cesta básica, socializada, incumbindo ao Estado dela ocupar-se e fixar regras para qualificar adequadamente o que deveria ser visto como cultura. Os conselhos, os prêmios culturais, os sodalícios e a mídia se ocupariam do resto. Mas isso é outro questão que deveria ser tratada no devido lugar.

Não foram poucos os avisados que levaram a sério os desafios dessa cultura estatizada. Deixaram seus nomes bem plantados. E respeitados. Por esse tempo, os arquitetos cearenses começaram a surgir e ocupar o espaço de Vitrúvio que lhes cabia. A duras penas, admitamos, que pouco lhes sobrava para a arte de construir moradas.  

Mas a cultura terminaria por politizar-se como tudo, aliás, que interessa aos homens e às mulheres. De começo mandava a elite e as pessoas gradas de influência reconhecida. Depois, vieram os “revisores”, os coletivos, a mídia forrada de ideias novas, social e politicamente regeneradoras.

Pois agora, tantos anos passados, e tantas perdas acumuladas, não sabemos o que devemos preservar do que restou. As velharias, por serem velhas por natureza, nem sempre são exemplos de cultura a ser preservada. Podem ser curiosidades, porém com data da validade.

As criaturas de saber e bom senso não são consultadas ou preferem, por receio ou comodidade, não se deixarem enrolar por querelas estéticas sem fim. E deixam correr.

Sobre o “nosso” patrimônio, o que ele é e como deve ser preservado muitos opinam, cofiam os pelos ralos da inteligência, legados por Trótski, e sentenciam sábios propósitos e abnegadas intenções.

Por décadas, muitos desses senhores e senhoras particularmente bem dotados lutam e relutam em torno de graves perplexidades sobre os atributos da Casa do Português e do Iracema  Plaza Hotel e porque devem ser guardados entre as preciosidades da nossa cultura. 

A Casa Azul tornou-se o pivô de novas e recentes tertúlias, ali pelo Meireles, dando para o mar. Alguns a classificariam, devida ou indevidamente, como bungalow dos ano 1930, por aí. 

O trecho que se interpunha entre a Casa Azul e o lugar atual da escultura de Zenon, com Iracema de arco e flecha, era uma rua que sofreu invasão das marés. Vivi meus tempos de criança ali, onde hoje se erguem o Holiday Inn e, para as nossas exigências gourmets, o Marcel.

Algumas outras edificações  levantadas no corredor que vai ao Mucuripe, entregaram os pontos, foram demolidas ou descaracterizadas. Até mesmo a Casa Johnson, projeto de Oscar Niemeyer, segundo consta, foi apagada e retirada dos registros.

A não ser pelo fato significativo de ter sido construída por novos cearenses que fundaram uma família distinta e respeitável, com um neto governador, senador e político dos mais destacados do Ceará, a Casa Azul tem muito pouco em seu favor. 

Já não vale falar nesse “azul” que passou a designá-la. Construções como essa, dos anos 1930, não seriam pintadas de azul. Eram brancas. Brancas-mediterrâneo, pois não. Tornou-se azul, assim  se suspeita, depois de assumir o seu novo e gostoso papel de um  “bar à beira mar”.

Bares, restaurantes, livrarias e igrejas devem ser, em princípio, respeitados. Melhor que tenham boa aparência, mesmo que por lá tenham passado Mílton Dias, Fausto Nilo, Antônio Bandeira, Moreira Campos, Lúcio Brasileiro ou Lustosa da Costa.

Não sou pelos espigões, porém é preciso saber, no que toca a essa valorosa causa de salvação da memória, se é justa e qual “memória”, dentre tantos equívocos queremos guardar… 

Tenho compartilhado com amigos, cúmplices de ideias, outros, intelectuais que somos, por designação oficial, a ideia impertinente da construção de uma “mapa”, a que em outros países se  chama atlas cultural . Nessa carta de propósitos bem intencionados figurariam os bens de raiz da arquitetura  edificada nestes quatro séculos de ocupação do Ceará. Registros urbanos e rurais, moradias, casas de fazenda, engenhos, prédios públicos e mais do que houver sobrevivido ao nosso esquecimento. Pesquisadores cearenses de ponta obraram o que parecia a mitos impossível. 

A obra de pesquisador, historiador escritor de Gilmar de Carvalho é a comprovação de que os projetos impossíveis são exequíveis. Boa parte dessas descobertas e do engenho dessas tarefas solitárias resultaram de esforço pessoal, privado. Gilmar de Carvalho é exemplo bem sucedido dessas afoitas navegações.

Há muito a recolher das perdas e dos restos da nossa cultura cearense. Das sobras esquecidas, lastros jogados fora, do  que ficou pelas estradas. Sem reduções ideológicas, trabalho que em muitos despertará interesse e a curiosidade por saber como se constrói de fato um intelectual.

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

 

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