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A capoeira no gingado da lei. Por Angela Barros Leal

No dia 2 de maio de 1890 embarcou do Rio de Janeiro no vapor Olinda, com destino ao presídio da malfadada ilha de Fernando de Noronha, o “indivíduo” José Elysio dos Reis, condenado por capoeiragem. O delito de “exercício da capoeiragem” estava tipificado desde o tempo do Império, de cambulhada com os de embriaguez, desordem, furto e vagabundagem.

Os periódicos fluminenses tratavam da prática da capoeira desde a década de 1820: “Fugido moleque ladino da nação Congo, por nome João, muito preto e bonito de rosto, 14 anos mais ou menos”, avisava um. “É muito esperto e capoeira”. Da nação Rebolo era José, “olhos à flor do rosto, andar de capoeira”. Alguém desejava comprar, sabe-se lá com quais intuitos, “um preto capoeira, sendo por preço cômodo”. A prática não era vedada às mulheres, tanto que era procurada Isabel, nação Cassange, 18 a 20 anos, “estatura alta e meia capoeira”.

O layout do praticante faz-se visível na descrição do que vestia o fugitivo Francisco, 12 anos em 1825: “Fraque de pano preto e umas calças de ganga extraordinariamente grandes. Apesar do corpo pequeno o moleque é muito capoeira e não menos vivo”. Ou na convocação pública para localizar o escravo Joaquim, “que indica ter gostos de capoeira pelos trajos seguintes: jaqueta azul de pano, muito curta, quase ao pé dos ombros, calças brancas de brim imitando, na altura da jaqueta”.

Complementando a aparência, os anúncios detalhavam a postura dos fugitivos, das nações Rebolo, Inhambane, Cabinda, Angola e tantas outras – vasta a rede de arrasto dos traficantes de carne humana. Circulavam pelas ruas da Corte a serviço de seus donos ou deles tentando escapar. Apresentavam “andar muito desembaraçado”, “gingando alguma coisa”, ou seja, traziam ares e jeitos de ser “bastantemente capoeiras”. Exibiam sua arte, ou seu delito, “no andar estonteado, no chapéu que trazem à banda”.

Aos poucos a expressão estendeu-se em metonímias, ausente clara definição do que se tratasse, sendo colocada, no Ceará, na conta de capoeira qualquer “figura sinistra, hirsuta, chapéu à banda, grandes cacetes em punho”, ocultando quase sempre facas, punhais e as “insidiosas navalhas”, figuras estas conhecidas pelos codinomes de Arranca Queixo, Rasteira Certa, Sete Mortes, Testa de Pedra “e outros que simbolizavam feitos gloriosos nos anais da capoeiragem”, no registro do jornal Pedro II de 1881. Não há menção à cor da pele dos praticantes.

Mulatos e brancos se apropriavam aos poucos da tradição africana, ou da maneira com a qual ela passara a se apresentar, em mutações na composição étnica da capoeira. Tanto que, por morar no Rio de Janeiro, o já mencionado José Elysio dos Reis, branco, português, seguira para Fernando de Noronha. A ordem partia de Sampaio Ferraz, apelidado Cavanhaque de Aço, primeiro Chefe de Polícia da República e inimigo declarado da capoeiragem, desejoso de “expurgar da Capital Federal a vagabundagem e a terrível praga da capoeira”.

A acusação a Elysio, que dela não se preocupara em defender, provocaria um inesperado imbróglio político na recém-nascida República. Era ele irmão de ninguém menos que o Conde São Salvador de Matosinhos, fundador do jornal O País, autodefinido como “a folha de maior tiragem e de maior circulação na América do Sul”, amigo próximo de Quintino Bocaiúva, o primeiro Ministro republicano das Relações Exteriores. Nem o Conde nem Bocaiúva aceitaram a prisão de Elysio, desligando-se o primeiro do jornal e o segundo de seu cargo, sentindo-se ambos desprestigiados.

Mas que não se inquietassem por muito tempo. As engrenagens continuavam atuantes e Elysio dos Reis permaneceria apenas quatro meses na ilha. Dia 12 de setembro de 1890 despedia-se ele das terras brasileiras no vapor Northe, rumo a Portugal, tendo assinado antes, em Recife, um termo no qual se comprometia a não retornar ao País sem permissão.

Concidentemente ou não, o primeiro Código Penal republicano, promulgado em 11 de outubro de 1890 – portanto, um mês após os acenos de Elysio –, estabelecia entre seus 412 artigos as penas para a prática de capoeira. Uma pequena exceção abria interessante portinhola de liberdade, no parágrafo único do art. 403: “Se [o condenado] for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena”.

O Chefe de Polícia Sampaio Ferraz, com seu cavanhaque de aço, teria que aceitar o gingado da lei.

Angela Barros Leal é jornalista e escritora. Autora de 18 livros. 

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