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A camisa do Major Facundo. Por Angela Barros Leal

Na Igreja do Rosário, considerada a mais antiga de Fortaleza, datada do século XVIII, está sepultado João Facundo de Castro Menezes (1787-1841), o Major Facundo, assassinado dentro de casa no dia 8 de dezembro. Uma lápide de mármore, na parede ao lado esquerdo do altar, registra o fato que marcou a História local.

Em seu livro “Dicionário Bio-bibliográfico Cearense”, de 1910, logo após transcrever o auto de corpo de delito referente à morte do Major Facundo, o médico e historiador Guilherme Studart, o Barão de Studart, inseriu a frase: “Possuo ainda a camisa que vestia Facundo ao ser assassinado”.

A frase me assombra. Então o Barão mantinha consigo, em sua residência à rua Barão do Rio Branco, antigo nº 82, entre as estantes envidraçadas, os documentos raros e objetos de valor a camisa escura e rígida com o sangue ressecado do aracatiense Major Facundo, derramado em abundância no dia 8 de dezembro de 1841, quando teve a cabeça despedaçada por dois certeiros tiros de bacamarte.

O auto de corpo de delito é breve, porém justifica minha hipótese sobre a quantidade de sangue na camisa. Leio o auto, temendo o que vou encontrar. Discorre sobre fraturas no crânio. Grandes destruições ósseas. Lista nomes de ossos – occipital, temporal, parietal – do lado direito e esquerdo da cabeça. Trata da grande destruição de cérebro, cerebelo, grossos vasos. Ferimentos feitos com arma de fogo e que, “pelos estragos notados em entranhas, órgãos e vasos tão necessários à vida, foram absolutamente mortais”.

Era por volta das 19h. A sala de jantar “deitava duas sacadas sobre a rua da Palma”, na esquina com a rua das Belas, mais adiante rua São Paulo, detalha Gustavo Barroso, reconstruindo os fatos daquele dia dedicado a N. Sra. da Conceição. O Major, 54 anos, estava em casa, ao lado da esposa, Florência de Andrade Menezes Castro, quando da rua dois homens dispararam contra ele as balas mortíferas, ferindo também a mulher.

“Há sete anos que, ao pé do meu desditoso marido, no momento que me parecia de mais segurança e felicidade, eu o vi de súbito nos meus braços sem alma e com a cabeça despedaçada pelo mortífero fuzil de ferozes assassinos”, depôs a viúva em carta ao Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, em 8 de dezembro de 1848. “Sedentos de seu sangue, que de mistura com o meu jorrava-me pelo seio sobre o coração, partido por tão violenta separação”, os assassinos fizeram dela, naquela noite, “a mais infeliz das mulheres”.

Os motivos para o “bárbaro crime”, como explica o Barão, foram as questões políticas de sempre – situação versus oposição –, tendo o Major Facundo presidido a província por três vezes e estando, naquele momento, na mira do Presidente que o sucedera, Joaquim José Coelho, de partido oposto ao seu.

Os executores materiais do crime foram condenados muito depois. Um deles em 1848, o ano em que a viúva Florência mandou afixar a lápide de mármore na parede ao lado esquerdo do altar da Igreja do Rosário, onde o Major foi enterrado de pé, qual um emparedado de contos de terror, a cabeça despedaçada voltada para o Palácio do Governo, hoje sede da Academia Cearense de Letras, em condenação eterna e feroz aos supostos mandantes.

Pobre Major João Facundo de Castro Menezes, cujo nome batizaria a antiga rua da Palma, onde seu sangue correu. Pobre Florência, que não daria nome a nada, e que morreria em 1865 após 78 anos de uma vida repleta de tristes acontecimentos. Casara pela primeira vez aos 13 anos de idade. Em 1842, ano seguinte à morte de Facundo, vira-se acusada de planejar um atentado contra Coelho, o Presidente da província, sendo condenada à prisão domiciliar reforçada pela presença de oito guardas armados, dentro de sua casa.

De lá testemunharia a partida apressada de dois dos cinco filhos do casal, fugindo para o Norte por temerem pela própria vida. A morte do caçula, Ernesto, no ano em que se graduaria em Direito, em Olinda. A morte da filha mais velha, Joana, deixando sete filhas. A morte por tuberculose da filha Cândida, de cujo amparo dependia, e que vestira luto pelo pai ao longo dos 40 anos que vivera.

Talvez tenha sido Cândida, aos 17 anos, a responsável por guardar a camisa sangrenta do pai, estando Florência sem condições físicas ou emocionais de fazê-lo naquele dia fatal. Talvez tenha a camisa passado de mão em mão até alcançar seu porto seguro sob os cuidados de Guilherme Studart, nascido dezesseis anos após o crime, zeloso da preservação de documentos e objetos que contassem o passado do Ceará.

“Possuo ainda a camisa que vestia Facundo ao ser assassinado”, anotara o Barão no seu Dicionário. Não há referências à camisa no seu testamento, escrito de próprio punho em 1927. Relíquia mórbida, que há de ter sido tragada pela voragem do Tempo.

 

Angela Barros Leal é jornalista e escritora.

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