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A brecha autoritária: as armadilhas da democracia, por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

“… a propriedade impõe obrigações.  Seu uso deve estar a serviço do mais alto interesse comum”. Constituição de Weimar, art,. 153
“A justiça, tolerante com as infrações à lei e com seus notórios infratores, acabou caindo em descrédito”. Carlos Roberto Jamil Cury,  “A Constituição de Weimar”, in Educação e Sociedade,  vol.16 n. 63, campinas,  1998
A República de Weimar e a sua Constituição representam o exemplo mais completo de como um arcabouço legal, inspirado em ideais democráticos, pode servir, paradoxalmente, ao advento de um estado de exceção. É verdade que a própria Constituição trazia inoculado em suas artérias o vírus que a destruiria, a figura do “estado de exceção” concebido como instrumento de defesa contra os eventuais impasses entre o executivo e o legislativo. As instituições que ela produziria gestariam, por sua vez, alguns anticorpos que frustrariam os desígnios que a inspiraram. Nascidas no rastro de uma derrota mascarada pelo armistício de 1918, as instituições extraídas das entranhas de um século findante, o “longo século XIX”, não encontraram tempo para consolidar-se.
O povo alemão não recuperara a capacidade de crer em seus valores tradicionais e viu-se dominado pela sedução das soluções extremas. Completava o cenário, a existência de partidos que, alçados ao governo, revelaram programas político-constitucionais contraditórios, circunstância que emprestava particular força aos partidos de extrema esquerda e aos da direita.  Com o desbaratamento de suas lideranças mais respeitadas, o movimento socialista, sob o manto da socialdemocracia, viu-se enfraquecido perante as classes médias e frustradas as possibilidades políticas reais para que pudesse enfrentar a maré montante da direita totalitária.
Foi a brecha autoritária que abriu caminho para os “freikorps” e a sua ação contra o que pudesse ser visto como “antipatriótico”. E graças a esta exceção legal e à leniência da população católica, maioria na Alemanha, tornou-se possível o trágico assalto ao poder desferido pelo nacional-socialismo, que levaria à criação do III Reich. Tudo se deu em face da fragilidade das lideranças políticas, enquadradas por um agrupamento partidário ambicioso, ao sabor de minorias militantes animadas por arraigada xenofobia étnica, pelo militarismo ressurgente e o espectro ameaçador do comunismo de inspiração soviética.
Não seria diferente na Itália, com Mussolini, tampouco na Espanha de Franco.  Tranquilize-se o leitor, tomado de surpresa diante da lição pretensiosa que o ameaça nestas linhas mal traçadas: não o conduziremos, a contragosto, para um passado distante, já esquecido pelos novos oráculos e intérpretes da revelação do pensamento e da ação políticas, aqui e alhures, neste mundo, vasto mundo, tão intolerante quanto vesgo em suas aspirações coletivas…
A lição de Weimar não pode, entretanto, ser esquecida. Temos insistido, mais do que toleraria a paciência dos leitores, sobre os riscos que corremos em face dos arrulhos do Leviatã e dos seus aplicados intérpretes. A autocracia, nos longos desvios da História, aparece como alternativa, em momentos de crise, às frágeis fantasias democráticas dos homens.
No Brasil, como no seu vasto entorno andino, carregados de impulsos de sua realidade fantástica, guardamos um legado particularmente rico de desvios à direita e à esquerda, de recaídas levemente democráticas e parcialmente republicanas. Mas logo nos recuperamos do súbito surto autoritário para recairmos, na primeira oportunidade, na sedução salvacionista do herói libertador. Por aqui reconstruímos a figura mítica do “sebastianismo populista”, aquele que melhor nos serve, o retorno aguardado do salvador anunciado, que não seja de esquerda, menos de direita, mas que encarne a figura das nossas ambiguidades, o “centro” jeitoso daquele político habilidoso que come pelas bandas e chupa pelo meio…
Falamos das ameaças do autoritarismo, lobo em pele de cordeiro, que nos ronda diante da apatia dos conformados, da ignorância dos desinformados, da cumplicidade dos “companheiros de viagem”, da esperteza e da fala sedutora dos encantadores de serpente, manipuladores astutos do aparelhamento controlador do Estado.
Foi assim no passado, nada nos assegura que não seja assim, agora e no futuro. Sabe-se como a estrutura das sociedades, os conflitos reais e os latentes, podem conduzir à preservação ou à quebra da estabilidade do regime democrático. São ricos os ensinamentos da experiência.
Deparamo-nos, no Brasil, com um cenário impressionista de circunstâncias e fatos, registrados por uma crônica implacável das brechas autoritárias abertas nas aspirações ingênuas de uma frágil consciência democrática que não fez morada permanente entre nós, até hoje.
A distância que se abre entre o Brasil real e a democracia, entre o Estado cartorial e corporativista que criamos e as instituições republicanas que aspiramos (ou pretendemos) possuir é determinante do baixo “índice de desenvolvimento democrático”, marca que nos nivela a um grupo amplo de nações recolhidas à sombra dos totalitarismos disfarçados. E de permeio, causa ou conseqüência desses desacertos seculares, as carências educacionais e de saúde pública crônicas, a fragilidade das instituições políticas, a expansão e a concentração dos poderes do Estado. Está de bom tamanho ou seria necessário aumentar o rol de embaraços de raiz para ter-se a dimensão real das nossas limitações? Como pode conviver um Estado com tamanha projeção territorial, com tantas fraturas expostas em desequilíbrio com a cidadania, com os direitos fundamentais e com tudo o mais que faz dos valores, da cultura e do patrimônio legal de uma nação um conjunto estável de relações permanentes? Como conciliar distribuição tão perversa da renda com as aspirações teórico-ideológicas que servem de esteio às fontes do poder e aos ideólogos de uma nova sociedade anunciada?
Não são poucas as nossas “brechas autoritárias”. Na ordem legal, a legislação cresce, multiplica-se e atropela as liberdades em nome de uma miragem legal, ampliando, de um lado, os vazios, os hiatos da tolerância e, de outro, estreitando as fronteiras da cidadania. O Estado apequena-se no atacado e avulta no varejo. Interfere no assessório e alheia-se no principal.
Alguns episódios recentes ilustram o viés que anima os governos a desenvolver instrumentos de controle social e político em suas próprias oficinas, uma forma de usinagem doméstica, artesanato feito no capricho, uma fábrica de embutidos mal cheirosos.
Imaginaram os arquitetos da nova ordem ampliar o horizonte dos direitos humanos, categorizando-os sob sua jurisdição particular, esquecidos de alguns princípios que, outrora, se incluíam nas as atribuições constitucionais do Congresso e dos Tribunais Superiores.
Houve quem pensasse, motivado pelas boas causas, que por más não terão sido, naturalmente, em subordinar a mídia a um conselho de notáveis para fustigar-lhe os excessos. Os movimentos sociais, transformados em sindicatos e os sindicatos em movimentos sociais, estão por se tornarem nos nossos “freikorps”, levam jeito e já têm musculatura fortalecida para agir por conta própria. Ainda assim, o Estado comparece com a sua doce leniência (por medo ou frágil presunção de alianças futuras?), irriga os caixas regidos pela cartolagem histórica. Os partidos, organizações nascidas no seio de famílias bem criadas, multiplicam-se e oferecem a falsa perspectiva de contraditórios político-ideológicos que nada mais são, na realidade, do que ações combinadas e concertadas no arrimo de transações bem sucedidas.
Como resumo da ópera, incorporou-se à prática governamental o hábito recorrente, uma forma inédita de hipocrisia de curso forçado, a negaça de oitiva. Negar-se a evidência, pior para a evidência. Ignorar a realidade? Pior para a realidade. Os princípios que instigam os homens políticos são outros, agora, porém mais atuais e consentâneos com a nova realidade construída.
As ideias e os compromissos políticos são valores mutantes: muitos deles se enquadrariam perfeitamente e com evidente conforto na classificação de “conservadores revolucionários”, empreendedores contumazes e negociadores realistas…
A oposição, no Brasil, não resiste a uma eleição. Por esses tempos carregados de promessas, o que se tomava até à véspera como oposição desfaz-se no ar, ao sopro do discurso brando das conveniências dos aliados d’antanho substituídos pelos novos aliados, dominados por patrióticos arroubos e pela arrogância dos cometimentos anunciados pela partilha iminente do poder.
Afinal, como dizia preclara pensadora política, da ilustre estirpe dos Rousseff, “o que não se faz para ganhar uma eleição?”. No Brasil, estamos acostumados a assistir o que se faz, nesses casos; não é novidade para tantos. Passada a borrasca permitida, fazemos as contas do prejuízo. Como agora, contabilizamos o que restou das “políticas públicas” que levaram o País à catástrofe da qual os seus inspiradores reclamam, patrioticamente.
Oposição e governo não dissentem, assentem, prometem as mesmas benesses, formulam as mesmas críticas, afeitos a uma unanimidade que assusta os menos avisados na ciência das ambições humanas.
Em outros tempos, quando os políticos eram, na maioria, liberais, de rabo preso com as “elites”, os homens de governo mostravam-se dotados de habitual continência verbal, falavam pouco e muitos, quando exerciam as suas faculdades de verbalização, o faziam com elegância, com alguns toques de distinção — e demonstravam possuir uma certa visão ética da coisa pública e dos seus afazeres de atores e agentes do Estado. Esses exemplares raros de uma espécie em extinção desaparecerão, como os dinossauros, vítimas da própria dieta, carentes de verdades banais e desvalidos de princípios considerados, até mesmo pelos mais velhos, páginas viradas de uma história comprometedora.

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